AGORA PARE: TEXTO SÓ PRA QUEM TÁ AFIM REFLETIR SOBRE OS ÚLTIMOS EPISÓDIOS RACIAIS

Angela Davis, na introdução  do livro “Mulheres, Cultura e Política” enfatiza que o ofício do ativismo político envolve inevitavelmente certa tensão entre a exigência de que sejam tomadas posições em relação aos problemas atuais à medida que eles surgem e o desejo de que sua contribuição, de alguma forma, sobreviva à ação do tempo (p.11). Não tenho a intenção de escrever nada que sobreviva ao tempo. Não aqui neste espaço. Mas não escrevia ao vento. Preciso então me conformar com a ideia de que acredito na força da troca dessas dúvidas e reflexões para trazer um alento a mim ou a você. “Óbvio, ninguém jamais pode ter certeza de que seus posicionamentos e análises conservarão a validade para além do imediatismo do momento”. Então, o que posso ser é honesta. Pare de ler esse texto se você não quer problemas. Esse texto só é pra quem tá afim refletir ou ficar com mais dúvida sobre os últimos episódios raciais: Fabiana Cozza e Dona Ivone Lara, Jogos Jurídicos da PUC, Atlas Brasil da Violência. Aviso dado, agora você decide se continua ou não a leitura.

 

“Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia racial (…)”. É assim que começa o texto “Quem é mulher negra no Brasil?”,  de Bianca Santana, publicado na Revista Cult, edição de maio/2018. Imediatamente, olho pra minha pele e me sinto nesse lugar de fala. A identificação com o texto já nas primeiras linhas é alta. Fico presa. Interessada. Sigo lendo.

 

“Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é a sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinado ambientes ou situações. (…)

Tarefa difícil é essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro 1/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwartz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. mas o termo se refere a pessoas desde o brasil colonial, com múltiplos usos e significados.

No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independente da cor de pele. O termo PARDO no Brasil Colônia, portanto, indicava além, da cor da pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravagista.

Segundo Hebe Mattos, o TERMO era uma possibilidade de DIFERENCIAÇÃO SOCIAL, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.

Da mesma forma, os termos PRETO e NEGRO também apresentavam DIFERENÇAS semânticas no período escravocrata: NEGRO era o escravo insubmisso, e PRETO, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, CRIOULO era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, PRETO designava africanos.

Os censos evidenciavam, no quesito cor, como essa semântica é NEGOCIADA no brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. o primeiro Censo no Brasil em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censo de 1900, 1920 e 1970, o item COR foi RETIRADO. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No Censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como PARDOS. Em 1980, havia uma explicação para PARDOS: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos, etc”.

Em 1976, o IBGE (…) deixou a categoria COR comum uma pergunta aberta. Centro e trinta e seis cores diferentes forma registradas, que iam da acastanhada à vermelha.

Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensão propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. (…) Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. (…). Em 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações sociais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e senzala.

 

Lélia Gonzalez, é uma das vozes que DESCONSTRÓI o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia brasileira.

 

O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabenguele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.

Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas NÃO-BRANCAS, especialmente as negras e indígenas. (…) O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados.

É importante, ao falarmos de COLORISMO, não cometermos o mesmo erro. AFINAL, a QUEM isso pode interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se uma mulher negra é uma conquista”

(Todos os grifos em caixa alta são todos meus)

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Quero ressaltar a informação dada no começo da leitura. Esse texto acima é de Bianca Santana, lançado na edição da revista Cult de Maio/2018, bem antes dos acontecimentos que se tornaram “tretas” de redes sociais envolvendo Fabianna Cozza, o espetáculo Dona Ivone Lara, jogos jurídicos na PUC. “Tretas” que para os envolvidos são bem mais do tretas, são vidas, instantes de vidas com sofrimento, resignação, dúvidas, conflitos, inferno social e emocional.

Foi lançado, portanto, bem antes da polêmica Fabiana Cozza, atriz negra de pele clara, ou parda como registrada em sua certidão de nascimento. Ela se retirou da produção do musical Dona Ivone Lara, ao ter sua escalação par ao papel questionada por ser parda e não negra retinta como Dona Ivone Lara. Li e reli muitas opiniões e comentários. E todas as vezes o texto de Bianca Santana me vinha a cabeça.

Foi lançado antes do episódio de domingo passado (03/06) em que jovens estudantes de direitos da PUC teriam sido racistas com estudantes de direitos da UERJ. Foi lançado bem antes do lançamento do Atlas da Violência 2018, que mostra como enquanto há queda de letalidade de pessoas brancas (ok, não é enorme, mas há uma queda de mais de 6%), pessoas não brancas: negros e pardos, são cada vez mais assassinados no Brasil.

 

O texto de Bianca Santana não sai da minha cabeça, porque em parte, ele explica esse quadro contemporâneo brasileiro. Especialmente, o episódio de Fabiaza Cozza. A ideia do desvelamento do suposto mito da democracia racial, bem como da apaziguação de conflitos foram as únicas certezas que ficaram em mim sobre o episódio. Assim como que a ideia da procura de uma identidade em identidade, conceito adotado por Valter Mignolo, não apenas é necessária como faz parte da ideia de classe e da luta de classe.

Essas vozes, portanto, não podem ser reduzidas a mimis de facebookianos ou podem ser acusada de uma fragmentar a luta de esquerda, a classe, perante a lutas mais importantes. Não podem ainda servir para afirmar que o lugar de fala divide a esquerda. Aliás, erro comum em diversos textos que li e opiniões é confundir lugar de fala com representatividade. Aviso: são coisas diferentes.

“Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa (e não do lugar que ocupa o outro) Acreditamos que não pode haver essa desresponsabilização do sujeito do Poder. A travesti negra fala a partir da sua localização social assim como o homem branco cis. Se existem poucas travestis negras em espaços de privilégio, é legitimo que exista uma luta para que elas de fato possam ter escolhas numa sociedade que as confina num determinado lugar, logo é justa a luta por representação, apesar dos seus limites. Porem, falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer pensem”, explica Djamila Ribeiro.

 

Argumentar que lugar de fala e representatividade são coisas iguais é um erro. Para além dele, é negar que “o modo de conceber ou não autoridade (e legitimação de discursos) com base nas posições e marcas políticas que um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas  desiguais de distribuição das violências e dos acessos” (Jota Mombamça). É criticar sem reconhecer “o fato de que há uma política (e uma polícia) da autorização discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero dizer: não são os ativismos de lugar de fala que instituem o regime de autorização”  (Jota Mombamça). Ele está posto. Foram instituídos colonialmente. Negar isso é desonestidade intelectual.

Ressalto que, os argumentos de divisão da esquerda, fragmentação e bem como a redução destas múltiplas vozes que interrompem regimes de autoridade postos, em minha franca opinião dividem muito mais a classe do que agregam a luta de classe. Porque partem de um dispositivo colonial de silenciamento de vozes e memórias, bem como de acesso a direitos. As políticas públicas que possam efetivamente traduzir e conectar a desigual distribuição de pedaços de Brasil, que foram fragmentados pela política escravagista, pelo mito da democracia racial, pelo medo branco dos não-brancos, medo tão grande que até negou a pardos e negros de forma política na gestão do Estado o direito a cor. Por que sem cor num país desigual, não é necessário pensarem políticas públicas e/ou solução para a má e intencional distribuição de tudo: renda, direitos políticos, oportunidades e até a vida. Ainda que raça, como explica Mbembe, seja uma fabulação, é uma fabulação que existe na prática e opera a necropolítica. Abram o Atlas da Violência 2018 e terão o exemplo claro do que é necropolítica para além de explicações teóricas.

Então, os argumentos operados sobre a importância da representatividade não são tolos. Não são mimis de “gente de rede social”. Inclusive, é bom para se pensar resgatar que “com todos os limites, o espaço virtual tem sido uma espaço de disputas de narrativas, pessoas de grupos que historicamente discriminados encontram aí um lugar de existir” (Djamila Ribeiro). E agora, essas vozes estão querendo empurrar (sim, eles tem pressa e nesta pressão cometem também erros comuns aos que tem pressa) essa disputa par ao campo a ação prática do cotidiano. Incluindo, a representatividade sobre a cor da atriz que vai interpretar um ícone das suas memórias.Porém, reduzir sua disputa a mimis , acusá-los de fragmentar a classe, não sei se dá conta dos conflitos sociais e raciais que emergem e explodem na nossa cara. Numa sociedade como a brasileira, de hierarquização escravocrata de absolutamente tudo, até a vida, é evidente que pessoas negras (retintas) vão “experenciar  racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta de um sistema de opressão” de forma diferente que as pessoas negras de pele clara: os pardos.

Olhar apenas para essa micropolítica – que não é absolutamente desimportante –  bem como somente olhar a criatura colonial “o pardo” sob a perspectiva da experimentação negociada de racismo – que é imprescindível ser analisada – que pode sim deturpar a importância da representatividade por processos de identidade política. Jogar assim para os bastidores o que essa jornada emerge de tão importante: os lugares de privilégios brancos e o apagamento da existência das vozes e lugares de fala de negros e de outras minorias.

“Não, não estou falando de “política de identidade”, mas de “identidade em política”. Não há, pois, necessidade de argumentar que a política de identidade se baseia na suposição de que as identidades são aspectos essenciais dos indivíduos, que podem levar à intolerância, e de que nas políticas identitárias posições fundamentalistas são sempre um perigo. Uma vez que concordo parcialmente com tal visão de política de identidade – da qual nada é isento, já que há políticas identitárias baseadas nas condições de ser negro ou branco, mulher ou homem, em homossexualidade e também em heterossexualidade –, é que construo meu argumento na relevância extrema da identidade em política. E a identidade em política é relevante não somente porque a política de identidade permeia, como acabei de sugerir, todo o espectro das identidades sociais, mas porque o controle da política de identidade reside, principalmente, na construção de uma identidade que não se parece como tal, mas como a aparência “natural” do mundo. (…) a identidade em política é crucial para a opção descolonial, uma vez que, sem a construção de teorias políticas e a organização de ações políticas fundamentadas em identidades que foram alocada, (…) pode não ser possível desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no mundo moderno em uma economia capitalista. As identidades construídas pelos discursos europeus modernos eram raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais” (MIGNOLO, 2008).

Mas daí, me veio a dúvida – que confesso seguir com ela. Estamos diante de uma política de identidade aqui (importantes como já mostrados historicamente na década de 60 e 70, nos EUA, mas que pode sim fechar-se em guetos), ou estamos diante de uma IDENTIDADE EM POLÍTICA no Brasil?

Fico pensando que, somente após muitas reflexões e avaliações, que poderemos ter certezas do que são e como foram esses processos.

Por hora, estamos no contemporâneo. É absolutamente difícil avaliar. Sinto que seguimos na Jornada, cavalgando, viajando, vivendo, sem realmente refletimos sobre ela de forma sincera, com honestidade intelectual.

O que tenho certeza é que: o mito da democracia racial no Brasil está deposto. Claro. E branco. Como aqueles que o criaram. Os conflitos estão aí desde do período colonial e não foram apaziguados. Apenas embraquecidos e silenciados. A qualquer custo. E de todas as maneiras. Mas agora, eles emergem como nunca antes. E eu? Bom eu sou parda de certidão, mestiça de colonização, e negra clara na minha definição política que está inscrita na identidade em política. Porque minha opção é pela desobediência epistêmica e desobediência política.

É como explicou Valter Mignolo: “A identidade em política, em suma, é a única maneira de pensar descolonialmente (o que significa pensar politicamente em termos e projetos de descolonização). Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organização do conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente, ou seja, formas que não são descoloniais, significam permanecer na razão imperial; ou seja, dentro da política imperial de identidades”.

Outra certeza que tenho é: nos falta ponto de escuta entre nós. O inimigo é outro.

Mas não dá pra dar as mãos a quem aponta dedos. Não dá pra segurar em dedos que se fecham. E definitivamente não dá para ter ao lado dos nossos ombros outros ombros que dão as costas e saem. Andando para o lado oposto. E só será possível essa escuta desse lugar de desobediência epistêmica e política.

Porque só foi depois de 903 páginas abertas. Foi só quando desci do navio com Kehinde, que compreendi meu “Defeito de Cor” pardo. Pra além, de ser mulher periférica. não dá pra negar essa reflexão. Mas minha decisão não é pela fissura, mas não é também pela conexão surda.

Não é fácil ser mulher e escrever nesse mundo. Não fomos preparadas para escrever. Não fomos preparadas para dizer. O mundo não foi preparado pra nos escutar. Ser mulher neste “defeito de cor”, retinta ou parda então é um complexo muito mais complexo.

A dor de Fabiana Cozza não é de gratuita. A dor de mulheres retintas não é gratuita. A dor de classe não é mera treta de rede social.

Por fim, quero dizer que quanto mais leio Angela Davis, tenho mais certeza: cometeu-se ao longo da história da luta dos trabalhadores o erro  de pensar classe sem pensar em racismo. Podemos está tomando o caminho inverso, mas também errático de pensar racismo sem pensar em classe.

Obrigado por vim até aqui nesse meu devaneio.

Minha resposta ao racismo é
raiva. Eu  vivi boa parte da minha vida
com essa raiva, ignorando-a,
me alimentando dela, 
aprendendo a usar antes que
jogasse minhas visões no lixo.
Uma vez fiz isso em silêncio, com 
medo do peso. Meu medo da raiva
não me ensinou nada. O seu medo
dessa raiva também não vai ter
ensinar nada. 
Audre Lorde

 

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* Além do texto de Bianca Santana, da Revista Cult, foi usado como base teórica os livros:

Angela Davis (Mulheres, Raça e Classe; e Mulheres, Cultura e Política),

Djamila Ribeiro O que é lugar de Fala),

Achille Mbembe (Necropolítica e Critica da Razão Negra),

Valter Mignolo (Desobestidênmcia Epistêmica), disponível em <http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/34/traducao.pdf&gt;

Ana Maria Gonçalves (O Defeito de Cor) disponível em <http://lelivros.love/book/download-um-defeito-de-cor-ana-maria-goncalves-em-epub-mobi-e-pdf/&gt;.

 

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A banalidade do mal de um domingo de sol

O Rio de Janeiro é um mapa de desigualdade também nas suas dores e no direito à vida e ao luto. Parece uma obviedade falar disso, mas aprendi com um texto de Darcy Ribeiro que as obviedades precisam ser descritas ainda que seja para falar sobre o óbvio. O dia hoje foi lindo, de céu azul, brisa fresca, tipo perfeito para boa parte dos cariocas e fluminenses. Enquanto que para outros foi quente, imperfeito, cinza e dilacerante, de medo sentido na carne, pele e alma. E isso, informo, é ter a experiência de viver na cidade do Rio de Janeiro.

Até o momento, primeiramente por furo jornalístico da mídia local (é bom pontuar e dar o devido protagonismo da cobertura desse conflito armado), sabemos que além de um helicóptero caído (acidente que vitimou 4 policiais) temos também 7 corpos caídos no brejo em posição de execução. “O saldo das últimas 24h na Cidade de Deus SÃO MAIS DE DEZ MORTOS, entre PM’s e traficantes. Há corpos ainda no brejo que precisam ser retirados. Inocentes foram baleados em casa, inclusive uma criança” (Vivi Salles), segundo denúncia dos familiares divulgada na mídia local (http://bit.ly/2gbZIDK) e também publicada nas mídias comerciais como o jornal O Globo (http://glo.bo/2fhPXVU). inclusive, também sabemos que como direito à vida, o direito ao luto estava sendo cerceado.

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Fotos de Fabiano Rocha/ Jornal Extra

Ainda, sabemos que: o novo secretário de Segurança Pública Roberto Sá, afirmou que, até agora, os laudos preliminares feitos pelo IML indicam…tcham tcham tcham: “que nem os corpos dos quatro policiais mortos nem o helicóptero da Polícia Militar que caiu na Cidade de Deus foram atingidos por disparos de arma de fogo” (trecho retirado do portal UOL http://bit.ly/2fekFfa). Mas também na manchete do Globo: “RIO – Perícia inicial não viu perfurações em helicóptero, diz secretário” e). A queda desse helicóptero intensificou ainda mais a operação que já ocorria dentro das favelas da Cidade de Deus. E não é eu quem estou afirmando isso. São as manchetes dos principais portais (“Após queda de helicóptero, polícia faz operação na Cidade de Deus” – UOL; e “Perícia preliminar não encontrou perfuração no helicóptero, diz secretário de Segurança” O GLOBO – http://glo.bo/2gbfrDE).

Ainda, em rápida análise (tipo de bate o olho a partir de olhos treinados e estudos na área, mas também para os atentos), sabemos olhando as principais notícias do portal O Globo que, todas as formas de lidar com o acontecimento da violência no Rio de Janeiro, seja pela mídia, Estado e população, foram desencadeados: 1)um acontecimento (a queda do helicóptero) amplamente divulgada pela mídia com dizeres que deixam todos em estado de suspeição e medo, 2) propaga-se uma reação de vingança (ao que parece) do governo impulsionada pela cobertura jornalística (a imagem da queda repetida vezes divulgada em todos os telejornais e portais) e demais notícias “Os policiais ocupam a comunidade à procura de bandidos que entraram em confronto com agentes no sábado” (trecho de O Globo http://glo.bo/2fSiq32), 3) notícias adjetivadas com foco na emoção, 4) evoca-se o luto público pelos policiais mortos na arena pública e institucionalmente (“Governador decreta luto oficial pela morte de policiais na Cidade de Deus”, o Globo, http://glo.bo/2fhRDyG), 5) gerando outras operações policiais na cidade e na localidade do acontecimento “por tempo indeterminado” (O GLOBO), legitimando uma ação violenta do Estado, 6) legitima-se prisões de “suspeitos” (“PM detém pelo menos três pessoas em operação na Cidade de Deus” O Globo), 7) surge rapidamente a oferta de reforço da Força Nacional – e Exército – em manchetes de jornais (“Governo oferece Força Nacional para ajudar na Cidade de Deus” http://glo.bo/2gbXGne), 8) veicula-se notícias de depredação a patrimônios públicos (Estações de BRT sofrem vandalismo após confrontos na Cidade de Deus. Consórcio estima prejuízo material em mais de R$ 37 mil. O GLOBO).

Por fim, 9) chega a denúncia de ações violentas arbitrárias pelo Estado com a informação primeiro do desaparecimento, seguida da morte, fechando o quadro da desigualdade da vida e do luto: “moradores da Cidade de Deus retiraram da mata sete corpos de jovens da comunidade, na manhã deste domingo (…) Familiares começaram a denunciar o sumiço das pessoas no sábado após ação da policia militar no local. Na ocasião, um helicóptero caiu, resultando na morte de quatro PMs: o major Rogério Melo Costa, o terceiro-sargento Rogério Félix Rainha; o capitão William de Freitas Schorcht e o subtenente Camilo Barbosa de Carvalho. Após o acidente, o Bope iniciou uma operação na comunidade” (O Globo).

 

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E o ciclo se fecha com a notícia que registra outro obviedade: a catarse coletiva que eventos de violência geram no Rio, ocasionado “boatos”: “A queda de um helicóptero da Polícia Militar, durante operação na Cidade de Deus, ontem, matando quatro policiais gerou uma onda de boatos sobre tiroteios e outros confrontos na cidade”. Como hoje há mídias locais em diferentes favelas e periferias do Rio, alguns dos eventos de violência tipificados pelo jornal como boatos, foram confirmados por essas mídias. Outros de fato se mostraram sendo boatos. Também por essa mídia local sabemos que “SÃO 14 MORTOS em 24h na Cidade de Deus!”, “O Ministro da Justiça do governo golpista disponibilizou a Força Nacional e o Exército para a Cidade de Deus. Escrevo isso ao som de bombas”, “Policiais militares não identificados tentaram me acuar agora há pouco, pegaram meu celular pra apagar o vídeo durante uma transmissão ao vivo e me xingaram ameaçando! NÃO PASSARÃO!” (Vivi Salles http://bit.ly/2gtgaCL).

Por 4 dias, estive hospedada na Lapa. Vivi um outro mundo de proximidades e rotina. Enquanto a Cidade de Deus estava ardendo e tensa por conta de uma ação policial iniciada desde às 7h da manhã – que eu sequer sabia está acontecendo pelo noticiário. Bom, enquanto isso, eu consegui ir até uma feira literária no Palácio do Catete, comprar livros, espairecer, tirar fotos daquele bonito lugar e voltar viva e feliz, bem e relaxada de volta a Lapa. Até que carreguei meu celular e primeiro pelas mídias locais – é bom dizer -, e posteriormente pelo jornal Extra, soube da queda de um helicóptero do RJ e da ação policial que ocorria. Meu sábado seguiu perfeito – exceto pela dor na garganta. Jantei e até conversei com amigos.

Acordei domingo na Lapa ainda,  em um dia parecendo perfeito, parede de vidro da ilusão quebrada pelas notícias da situação na CDD que chegava pelas mídias locais, e posteriormente, pelo noticiário da mídia comercial. Assim, soube e vivi o óbvio: do lado de cá da Cidade Nova pra Zona Sul, a vida seguiu bem normalzinha nesse domingo. A cidade está nervosa, muitos comentários ao redor, mas a rotina de parte da cidade não foi parada por conta disso. Mas veja: de uma parte do subúrbio (Zona Norte) também não. É bom frisar. Assim como em diversas partes da Zona Oeste.

Por que estou ressaltando isso? Porque há uma experiência de guerra e muitos conflitos no Rio de Janeiro, mas não uma guerra como querem fazer parecer em toda cidade, que o noticiário nos leva a crer. Mas existe um Rio de medos como relata Letícia Matheus em seu livro “Narrativa do medo”. Um medo espraiado que toma e é retomado por um jornalismo feito a partir, com e para provocar sensações.

cddUm discurso que invade o nosso peito e faz a gente primeiro achar que estamos debatendo política de segurança pública quando não estamos. Ao contrário, estamos deslegitimando a falta de segurança e a política calcada na vingança.  Uma vez que a convocação de uma solução é dada através da convocação de uma reação do Estado para se chegar a uma solução. Esse ciclo é repetido, repetido e repetido por tantas vezes na história do Rio de Janeiro que, talvez (precisaria confirmar com pesquisa), a primeira página do portal jornal O Globo de hoje (20/11/2016, 21h51min), pode ser muito parecida com os discursos de outros episódios de violência e outras primeiras páginas.

 Minha intenção não é contradizer o discurso de guerra e tão pouco crítica somente a mídia. Minha intenção é RESSALTAR que nessa guerra espraiado no Rio de Janeiro quem enterra os efeitos colaterais são os pobres. Os efeitos concretos são corpos inertes no chão, se antes armados, agora sem vida, sem existência, seja ela sem farda ou fardada. Não é o Rio como cidade cidadã e anfitriã do mundo que enterra nenhum desses mortos ou lida com seus efeitos. São os corações de perifas e favelas, de gente pobre, de familiares de farda e sem farda que sepulta seus amores antes armados para uma guerra sem nexo. O Rio Maravilha até enterra algo, mas é a sua memória e esse acordo tácito com a banalidade do mal (Hannah Arendt) promovido todos os dias na arena pública e midiática. E com essa prática, nós também sepultamos juntos a nossa banalidade do mal. Fazemos parte disso quando aceitamos a falta de informação, a alusão a uma hipótese como verdade no discurso jornalístico e compartilhamos essa alusão abertamente nas conversas facebookianas ou no sofá de casa. Portanto, falo do Rio de Janeiro quanto Estado, mas também do Rio de Janeiro formado por nós, um Rio de Janeiro de sentidos, esses sim, direcionados”.

 

Segundo Arendt, o mal, quando atinge grupos sociais, é sempre político e ocorre onde encontra espaço institucional. A banalidade do mal se instala no vácuo do pensamento e dos sentidos trivializando a violência. No caso, seríamos Alfred Eichmann tanto quanto alguns enxergam desse jeito os policiais, o Estado e até a galera do “movimento” (o tal tráfico de drogas). Sujeitos não necessariamente antisemita, bom ou mal, só odiosos burocrata cumprindo ordens sem questioná-las (ou aceitando o que tem, as seleções postas no mundo). Pessoas medíocres, que de certa forma renunciam a pensar nas consequências que os seus atos poderiam ter. Até hoje, as conclusões da filosofa causam muita polêmica. Mas, no fim, o que se sabe é o concreto: Eichmann foi enforcado em 1962 em Tel Aviv.

A banalização do mal você concordando ou não existe e está posta na mesa da mídia e da nossa casa. Também é coisa nossa, saca? Comentamos com ar distraído sobre a “anestesia” da violência e de como perdemos a capacidade de nos chocar e nos surpreender por ela. Da mesma forma que contamos (ou selecionamos os mortos que vamos contar) quando compartilhamos notícias, boatos e até usamos a linguagem da violência de repertório para expressar e justificar a banalidade do mal nossa de cada dia.

Mobiliza nosso arcabouço de argumentos para as atrocidades cometidas por grupos de repressão seja na durante a ditadura militar até as crueldades praticadas atualmente por bandidos, policiais  e milícias no Rio de Janeiro. Mas, o Rio da Lapa, do Catete, da Zona Sul e das áreas de classe média baixa, media e alta do subúrbio e Zona Oeste não experimentam o resultado dessa banalidade do mal uma vez que não vivem a guerra real dos moradores das perifas e favelas. Ainda que experimente o medo dessa guerra virtualmente pelo noticiário de crime. Porque nesses Rios de medo, o luto é seletivo como direito pleno assim como a vida. E o domingo de sol e brisa fresca é garantido, independente do dia da consciência que marca o calendário no espaço da cidade. O domingo é dia sagrado e não pode ser a data de luto visível que dirá reclamado. Ou de qualquer um.

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Volto a dizer, não tenho intenção de negar a experiência de guerra no Rio de Janeiro. Ela é real para moradores de perifas e favelas e na rotina diária, inclusive, de policias em decorrência da política de segurança pública de enfrentamento ao comércio de drogas. Na real, por conta da ilegalidade da droga propagada por um Estado retrógrado que segue os ritos efetivos da política de guerra as drogas. Apenas, acho hipocrisia midiática e de muitos moradores do Rio de Janeiro repetirem o discurso da guerra e concordarem os efeitos dela, legitimar essa guerra, saindo de muitos chopps do Belmonte com amigos ou estado na frente de seus computadores proliferando comentários em redes sociais. A experiência da guerra não é sentida por vocês (e muitos de nós).

 

No máximo, ela projeta uma sensação de insegurança pública (que pode ser real ou falsa), alimentando a cultura do medo (Glassner, 2003) acionada por nossa mídia (e quando falo nossa, refiro-me a mídia comercial sim, mas também a cada posto nosso. Somos mídia hoje. Ou não). Inclusive, é essa sensação que faz a gente invisibilizar a militarização da rotina e da cidade, bem como da política. Porque se quer segurança e, por isso, não se liga para os custo dessa segurança: nossa banalidade do mal, porque seus efeitos colaterais garantem a ordem da vida.

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Alguém ou muitos ao ler esse texto podem discordar de mim (e devem, se assim sentir que devem). Afinal, a denúncia da morte  de pessoas na operação policial da Cidade de Deus está tendo repercussão na mídia. É fato. Bom,  eu vou concordar com essa ressalva ao texto quando souber o nome de cada um dos caídos no chão e jogado no brejo na Cidade de Deus, quando eles não forem só corpos no noticiário. Quando eu souber da história de suas mortes, mas essencialmente também de suas vidas. Enquanto isso não ocorre (vamos ver o noticiário amanhã, quem sabe?), o que me ajuda a compreender essa diária banalidade do mal nossa é o texto que li recentemente no livro “Quadros de Guerra” de Judith Butler.

 E por conta dele no o fim, percebo que esse meu devaneio (ou tentativa de análise aqui) nunca quer na realidade falar sobre o óbvio da hierarquização e desigualdade da dor. O que quero mesmo nesse desabafo  de blá blá blá é CHAMAR A SUA ATENÇÃO sobre A REPRESENTATIVIDADE DA VIDA COMO TAL: O que é vida, afinal?

“O que permite que uma vida se torne visível em sua precariedade e em sua necessidade de amparo e o que nos impede de ver ou compreender certas vidas dessa maneira?”, Butler (2015, p.82-83). Sobre a vida diante da guerra a filosofá nos dá certas pistas:

Butler não salva a mídia, mas também não salva a nós: “em nível mais geral, se “o problema diz respeito à mídia, na medida em que só é possível atribuir valor a uma vida com a condição de que esta seja perceptível como vida” (idem), essa legitimação só pode ser acionada “de acordo com certas estruturas avaliadoras [nós] incorporadas que torna uma vida perceptível como vida.

Mas já que o assunto é vida e guerra, pensando em nossa banalidade do mal diária, é outro trecho do texto que ajuda a olhar para esses “Quadros Guerra” desses “Rios de medo”.

“A guerra sustenta suas práticas atuando sobre os sentidos, fazendo-os apreender o mundo de modo seletivo, atenuando a comoção diante de determinadas imagens e determinados sons, e intensificando as reações afetivas aos outros. É por isso que a guerra atua minando as bases de uma democracia sensata, restringindo o que podemos sentir, fazendo-nos sentir repulsa ou indignação diante de uma expressão de violência e a reagir com justificada indiferença diante de outras. Para reconhecer a precariedade uma outra vida, os sentidos precisam estar operantes, o que significa que deve ser travada uma luta contra as forças que procuram regular a comoção de formas diferenciadas. A questão não é celebrar a desregulamentação completa da comoção, mas investigar as condições da capacidade de resposta oferecendo matrizes interpretativas para o entendimento da guerra que questionem e confrontem as interpretações dominantes, interpretações que não somente atuam sobre a comoção, como também ganham a forma da própria comoção e assim se tornam efetivas ” (idem, p.83-84).

Sabe… As pessoas na Cidade de Deus podem ter morrido no último sábado porque em parte muitos de nós acreditamos que elas eram responsáveis por todas as mazelas, por todo esse medo e insegurança e que, portanto, elas mereciam morrer diferentemente daqueles quatro policiais caídos no chão. A real é que nós hierarquizamos dores. A letalidade policial em uma ação pode ocorrer, mas quando ocorre demasiadamente deveria alçar nossos questionamentos, mas há tempos isso não acontece. Talvez, o último grande caso de comoção e reflexão pública seja Amarildo na Rocinha. Ele foi morto porque policiais cismaram que ele era traficante. Nós aceitamos que pessoas que praticaram crimes no passado sejam tratados como destituídos de vida, são corpos que não são passíveis do nosso luto. Nós não ligamos para o preço da morte quando é cobrada para nossa proteção. Damos as mãos aos senhores da guerra em acordos tácitos invisíveis tanto quanto aquelas vidas para garantir nosso domingo de sol. São “corpos com passagem policial” como disse a repórter ao vivo no RJTV em 21/11/2016.

Também não ligamos para as mais de 7 mil crianças sem aula lá ou no Conjunto da Maré, porque não ligamos também para a rotina de violência que o trabalhador, aquele cara que dirige o ônibus, serve seu café ou até de dá aulas (pois é, há favelado dando aula, construindo prédios etc.). Nós não ligamos que o despertador deles tenha sido voos rasantes de helicópteros, tiros ou bombas. Que dirá se vamos ligar para aqueles que aparecem mortos.

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A nossa falta de memória e reflexão não faz apenas a gente sepultar a morte em dezenas no noticiário, mas a nossa própria condição de questionar a banalidade, o mal, as consequências, perceber o preço dos efeitos que para os pobres é mais caro que o preço de uma bala, mas pra o Estado barato quanto qualquer munição: não há como calcular preço quando se trata de deixar o perigo longe de nós, não é?

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As caipirinhas e papos com “voinho”

Como aqui é espaço pra confidência. Resolvi contar as histórias das minhas caipirinhas, cervas e conversas com meu voinho de coração. Vito Giannotti. Eu não tive um avô presente. Ele era só meu avô. Tinha carinho por ele , claro. Mas, só. Não tinha amizade. Quem ocupou esse lugar no meu peito e hoje cuida das raízes da frondosa árvore do meu coração é esse italiano porra louca, o homem mais jovem que conheci. Ele tinha 64 anos, chamada todo mundo de “seu puto” (os homis, é claro) e falava mais rápido do que minha mente no começo conseguia processar. De cara, eu amei por Vito Giannotti.

Fui aluna dele. E como o NPC – núcleo de comunicação que ele coordenava – funcionava tipo uma família que se reúne na cozinha pra contar os causos, a gente ficou amigo. Com o tempo, Vito se tornou minha família. Virou meu voinho. Ficou puto da primeira vez que eu chamei ele de vô. Ele era jovem demais na alma pra já ter neta que menstruava. Mas, com o tempo, ele permitiu ser chamado assim: de voinho, só por mim. Expliquei pra ele que nunca tive um homem mais velho em minha vida preocupado com os caminhos, os meus passos, que me ensinava tanto sobre vida, cultura, história, luta, comunicação, gente. Então, fui colocando ele nesse lugar meu de pai, padrinho, amigo e avô. Daí ele aceitou e começou nossos grandes papos ao lado de cerva, vinho ou caipirinha. Fazia uma caipirinha divina esse italiano aperreado que escolhei o Brasil como casa.

Mas, eu comecei saporra de texto prometendo uma história diferente. Então, vamos a ela. Muita gente não sabe, mas Vito cuidava da gente até quando tomávamos uns porres. Certa vez, em uma viagem a Curitiba, a gente foi pro Bar do Alemão, bebi horrores uns três submarinos e naufraguei no álcool. Tinha um moço que não parava de me cantar e quis me acompanhar até o hotel que estava hospedada. Vito não deixou. Não por moralismo, paternalismo ou vigilância. Bem longe disso. Mas, ele percebeu que num estava afim. Como? Bem simples.

Virou pra mim e perguntei: – Quer jantar, gordinha? (único homi na vida que podia me chamar assim)

Respondi: – Quero não Vitão! Tenho namorado, você sabe. Mas, tô de pileque e rindo e homi tá achando que o riso é pra ele.

Daí Vito virou pro homi e disse: – quem vai deixar ela no hotel sou eu! Você segue pro seu.

Pronto. Resolvido.

Dia seguinte quando cheguei no restaurante do hotel, ele levantou da mesa e de repente tinha um prato na minha frente e dois copos: no prato um monte de fruta e pão, nos copos suco de abacaxi e água. “Se hidrata, alimenta e come. Precisa de remédio pro fígado ou pra cabeça, pra ressaca?”. “Não vô, tô bem!”. “Então, bora trabalhar, desgraça!”

Outra vez, ele veio conversar comigo porque estava preocupado. Com minha vida sexual. a questão é que eu tinha terminado um namoro já há dois anos e meio e ele não me via sair com ninguém. “Gordinha, tô preocupado com você. Sexo é vida. Você precisa trepar, fazer amor ou sei lá o raio do nome que você quer dá. Você tá saindo com alguém?”

Eu, entre um riso e meio sem graça, respondi: – às vezes, Vito.

Ele, rebateu: – Mas trepa? Tá trepando?

Eu confesso que morri de vergonha,. Ao mesmo tempo que achava fofo a preocupação, estava sem graça. Vito era um homem super pra frente. Ele acreditava na liberdade sexual da mulher. Defendia isso com veemência. Quando o conheci seu coração era da mestre, madrinha e amiga Claudia com quem viveu por mais de 20 anos, e monogâmico. Seu coração era da Gata. Mas, sempre defendeu a escolha da mulher, a liberdade, era de fato um homem forjado no feminismo. Falava de sexo abertamente com a gente sem ser grosseiro. Papo Cabeça mesmo! Queria ver a gente feliz! Bem. E ter um parceiro e uma vida amorosa (não necessariamente dentro de um namoro) fazia parte desse bem estar. Por isso, perguntava às vezes sobre quando achava que a gente estava se entregando a solidão feminina.

Pulo rápido pra algumas semanas dessa conversa. Passei no NPC e estava meio com pressa. Reclamou. Foi minha vez de zuar com ele. “Oh Vito você não falou pra eu trepar? Tu estás me atrasando pra beijar na boca”. “Desgraça, então vai trepar!”

Vito morreu em 24 de julho de 2015. Perdi meu avô de coração, amigo, professor e mestre. Meu confidente. Quando eu me formei, ele que odiava a Barra da tijuca, foi na minha formatura. Não me encontrou porque chegou atrasado. Ficou na porta porque “uma hora você tinha que sair do raio desse salão”. Ficou me pé duas horas me esperando passar até me encontrar. Chegou cheio de presente, sandálias de dedo, uma camisa vermelha do MST, simples como sempre foi, distribuindo suas pírulas de afeto. Sua política de vida. Nenhum amigos foi a minha formatura porque a barra ficava longe. Vito foi. Já falei que ele odiava a Barra? Pois é.

Certa vez, me ligou um dia após meu aniversário. Pedindo desculpas porque não ligou no dia certo. Tinha voltado de viagem com Claudia e teve um voo tão turbulento que me confessou que pensou que ia morrer ali. Chegou tarde. Por isso, não ligara. Depois da minha mãe, o Vito era o meu único amigo, o único familiar que absolutamente nunca esquecia de me ligar. Foram oito anos com o seu telefonema de aniversário. Lamentava está em viagem e não ter ido na minha defesa quando conclui o mestrado.

Um dia antes da sua morte, estava com ele. Do nada disse: “Vitooooo”. “Que foi desgraça?! (chamava todo mundo assim pra implicar). “Te amo!”, respondi. Ele chegou perto da minha mesa e me abraçou e disse “Também te amo, minha gordinha”.

Quando o telefone da minha casa tocava aos domingos a tarde, eu sabia. Era o Vito. Toda vez que eu passava um tempo sem ir no NPC, ele ligava. Certa vez, na fase final do doutorado, me ligou pra perguntar se precisava de ajuda. “Vem pra cá me traz os jornais e a gente vê junto. Te ajudo”. Não é à toa que eu chamava ele de voinho. Falei que estava tudo bem. Quis saber detalhes. Foi mais de uma hora eu falando das análises de jornais. Cada uma ele gritava “Puta que Pariu! É isso!”. Depois que ele morreu, me desfiz do telefone residencial. Não tinha mais sentido.

Conto isso tudo pra dizer que sinto sua falta, mas principalmente pra nestes fragmentos dizer que tive esse privilégio nesta merda de vida: de conhecer e ser amiga e até família de coração de Vito Giannoti, o “operário da comunicação” que dedicou a vida a luta dos trabalhadores e a distribuir afeto.

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1º DE MAIO: PRECISO DE PALAVRAS DE ESPERANÇA E AMOR

Eu tenho alguns conflitos que acredito que sejam só meus. Mas aí, me vejo presa em outro conflito: o da falta de fé no outro, fora a soberba de julgar que só eu tenho a “iluminação” de pensar assim. É quando então abandono a ideia de guardar os conflitos comigo e divido com os amigos. Na falta de está agora na praia com amigos ou na companhia deles numa mesa de bar, decidi então dividir aqui com vocês essas minhas ladainhas. Aviso logo!
 
Eu estou sem cartão de banco desde que fui furtada em SP. Preciso ir até uma agência do meu banco para conseguir sacar dinheiro por biometria. Como moro no Engenho da Rainha, bairro dormitório do asfalto periférico suburbano do Rio, isso significa me deslocar até o Norteshopping. Então, é isso: neste 1º de maio precisei ir até lá. Só para sacar dinheiro para eu poder ir me despedir de um amigo do outro lado da ponte.
 
Bom, eu tenho meio que um código pessoal com alguns feriados. Por exemplo, não vou a cinema no Natal. Tampouco reclamo da padaria não abrir. Porque acredito que há limites (deve-se ter) para tudo na vida. E dia de Natal, ninguém deve ser obrigado a trabalhar, seja para me alimentar ou para me divertir. Então, há anos, eu não vou ao cinema no Natal. Faço isso também com o dia do comércio. Tive pai dono de boteco por anos e aprendi que dia do comércio é sagrado. Porque é praticamente o único feriado (exceto Natal) que o sistema do comércio (lê-se: capitalismo), respeita. Natal, Dia do Comércio e 1º DE MAIO.
 
Meu pai não aprendeu isso em livros ou em aulas. Aprendeu isso na vida como qualquer trabalhador, incluindo eu. Acesso a leituras que me explicassem o significado do 1º de Maio, diferenças de classes e o sistema neoliberal do capitalismo, eu só fui ter contado muito tempo depois. Lá por 24 anos. Sim, porque eu demorei a entrar na universidade e é nestes bancos onde se pode (ou não) ter acesso a um pensamento e reflexão mais profunda sobre esses temas. E pra ser justa, sobre 1º DE MAIO, eu fui ter acesso da importância desta data e sua simbologia nos bancos de aula do curso de comunicação popular do NPC. Foi Vito e Claudia Santiago que me ensinaram.
 
Dito isso, digo que o meu plano era bem simples: ir até o banco, sacar dinheiro e voltar pra casa. Só que quando eu cheguei em frente ao shopping (o banco fica em frente), deparei-me com um volume de pessoas grande entrando e saindo que me chamou atenção. Pensei que era por conta do cinema e restaurantes (porque mesmo em feriado abre, incluindo 1º de Maio). Porém, para meu total espanto inocente (já sei que sou iludida, não precisa dizer). Bom, para meu total espanto inocente, todas as lojas do shopping estavam abertas. TODAS! A loja de Colchão, de sapato, de roupa, de eletrodomésticos, tudo.
 
Olhei pro relógio com meu choque inocente e constatei o que já sabia. Eram 11h37, Pisquei várias vezes e de novo olhei o relógio. Foi quando entrei numa loja e me atrevi a perguntar: – você já estão funcionando? A vendedora com um sorriso blocado me respondeu que sim. “Mas o shopping nos feriados não abrem só a partir de 15h?”, perguntei como uma criança iludida. “Agora não mais senhora desde as novas leis trabalhistas. Só domingo mesmo. a gente trabalha até no dia do Comércio agora”.
 
Sentei no banco de madeira no meio do corredor e fiquei olhando o nada. Você deve está pensando que eu gosto de gastar seu tempo caso você ainda siga lendo isso aqui. Afinal, é muita inocência não ter sacado isso e se espantar com isso. Mas quero pedir a licença pra abusar da sua paciência só para explicar um pouco mais. Meu espanto era sim com tudo aberto, mas meu espanto maior era com todo mundo ali, inclusive eu. Meu espanto era vê pela primeira vez na vida um 1º de Maio no subúrbio como se não fosse feriado, tudo parecendo ser um dia absolutamente normal de trabalho. É claro que em outros 1º de maio e outros feriados eu já tinha visto um nível de comércio funcionando. Sei bem que não estou no 1º de MAIO em 1917, EM 1968 OU em 1980. Mas nunca foi assim: nunca pareceu que o 1º de MAIO NÃO existia. Por conta de tudo está funcionando numa grande normalidade de horários e funções. Mas, não pera, para: tudo não, constatei, quase tudo. Porque sim as escolas estão fechadas e diversos níveis de repartições públicas, assim como parte de um comércio de rua.
 
Foi então que percebi algo – que já sabia -, mas poucas vezes eu tinha visto (ou tomado consciência com tanta força: o 24/7. Melhor, as desigualdades aceleradas cada vez mais pelo 24/7, que vem criando nuances entre nós e nos dilapidando, digo, no espírito. 24/7 é o nome de um livro, mas também de um conceito. O livro faz um panorama vertiginoso de um mundo cuja lógica não se prende mais a limites de tempo e espaço, funcionando ininterruptamente sob uma lógica para a qual o próprio ser humano é um empecilho. Para o autor, nossa necessidade de repouso e sono é a última fronteira ainda não ultrapassada pela lógica da mercadoria. O capitalismo, no entanto, já se movimenta no sentido de colonizar mais essa esfera da vida e hoje financia extensamente pesquisas científicas que buscam a fórmula para crias o “homem sem sono”, capaz de trabalhar e consumir sob a lógica 24/7. O autor é Joanthan Crary. 24/7 é um dos diagnósticos mais agudos do mundo contemporâneo.
Em 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, Crary faz uma dura crítica a esta etapa do capitalismo — assim conceitualizada por representar a hegemonia da mercantilização e do consumo em massa de bens não-duráveis, consequentemente à emergência da globalização.
 
Veja: minha questão não é que neste 1º de MAIO há pessoas estão trabalhando, porque há muito tempo já existe (desde final dos anos 90). Ou porque as pessoas não estão saindo da suas casas para protestar e marcar a luta de direitos, ou ainda porque estão saindo da sua casa pra se divertir ou comer fora. Minha questão é que ELAS ESTÃO celebrando o fato de tudo está aberto, de estarem trabalhando, porque o IBGE informar que temos milhões de desempregados, então, melhor sair pra trabalhar do que está em casa. Meu espanto é com a sensação do tempo de trabalho e consumo que não se esvai e termina nunca. Não estamos mais divididos em ricos e pobres, classe média ou classe baixa. Estamos divididos em diversos tipos de gente que se acham mais gente porque não trabalham no 1º de maio, enquanto outros trabalham. Só que a parcela dos que trabalham está cada vez maior e a gente não liga. As pessoas que não trabalham estão felizes porque tem o dia hoje “livre” para fazer algo consumindo no shopping e as que não trabalham estão felizes porque trabalham. Estamos desiguais entre nós. No uso econômico da vida, mas principalmente no uso do tempo e fluidez entre tempo e espaço na vida. Somos diferentes e nos sentimos melhores ou não que o outro porque ele não tem tempo e nem espaço na vida pra viver. Eu posso ganhar o mesmo que ele, mas se eu ganho em um ramo que no 1º de Maio eu posso permanecer em casa, de fato exercer o uso do feriado, eu me sinto mais importante que aquele que não pode. E detalhe: que eu ainda vou explorar de certa forma. Não é porque eu sou mau, desonesto, explorador, mas é porque o roda que faz o mundo girar é assim: 24/7 no capitalismo tardio. Nós estamos mais feios, levaram nosso espírito, e a gente celebra isso. E gosta!
É claro que isso é uma generalização, mas na prática é mais ou menos a realidade não é?
 
O vendedor estava feliz que ia vender, o dono do comércio feliz porque ia vender, as pessoas no shopping felizes porque iam consumir.
Então, vocês me perdoem tanta ladainha pra pedir algo tão simples: mas eu preciso de palavras de amor e de esperança neste 1º de Maio, porque eu caminho e me sinto absolutamente derrotada, congelada no tempo. Velha, decrepita e absolutamente infantil de está com esse conflito e escrever essas linhas. 
 Alguém aí pode dizer: mas você foi pra igreja do capital, foi para o templo do capitalismo, queria o quê? Volto a dizer: vocês me desculpem, mas acreditem NUNCA ANTES NA HISTÓRIA FOI ASSIM.
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