Angela Davis, na introdução do livro “Mulheres, Cultura e Política” enfatiza que o ofício do ativismo político envolve inevitavelmente certa tensão entre a exigência de que sejam tomadas posições em relação aos problemas atuais à medida que eles surgem e o desejo de que sua contribuição, de alguma forma, sobreviva à ação do tempo (p.11). Não tenho a intenção de escrever nada que sobreviva ao tempo. Não aqui neste espaço. Mas não escrevia ao vento. Preciso então me conformar com a ideia de que acredito na força da troca dessas dúvidas e reflexões para trazer um alento a mim ou a você. “Óbvio, ninguém jamais pode ter certeza de que seus posicionamentos e análises conservarão a validade para além do imediatismo do momento”. Então, o que posso ser é honesta. Pare de ler esse texto se você não quer problemas. Esse texto só é pra quem tá afim refletir ou ficar com mais dúvida sobre os últimos episódios raciais: Fabiana Cozza e Dona Ivone Lara, Jogos Jurídicos da PUC, Atlas Brasil da Violência. Aviso dado, agora você decide se continua ou não a leitura.
“Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia racial (…)”. É assim que começa o texto “Quem é mulher negra no Brasil?”, de Bianca Santana, publicado na Revista Cult, edição de maio/2018. Imediatamente, olho pra minha pele e me sinto nesse lugar de fala. A identificação com o texto já nas primeiras linhas é alta. Fico presa. Interessada. Sigo lendo.
“Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é a sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinado ambientes ou situações. (…)
Tarefa difícil é essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro 1/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwartz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. mas o termo se refere a pessoas desde o brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independente da cor de pele. O termo PARDO no Brasil Colônia, portanto, indicava além, da cor da pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravagista.
Segundo Hebe Mattos, o TERMO era uma possibilidade de DIFERENCIAÇÃO SOCIAL, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos PRETO e NEGRO também apresentavam DIFERENÇAS semânticas no período escravocrata: NEGRO era o escravo insubmisso, e PRETO, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, CRIOULO era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, PRETO designava africanos.
Os censos evidenciavam, no quesito cor, como essa semântica é NEGOCIADA no brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. o primeiro Censo no Brasil em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censo de 1900, 1920 e 1970, o item COR foi RETIRADO. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No Censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como PARDOS. Em 1980, havia uma explicação para PARDOS: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos, etc”.
Em 1976, o IBGE (…) deixou a categoria COR comum uma pergunta aberta. Centro e trinta e seis cores diferentes forma registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensão propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. (…) Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. (…). Em 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações sociais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e senzala.
Lélia Gonzalez, é uma das vozes que DESCONSTRÓI o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabenguele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas NÃO-BRANCAS, especialmente as negras e indígenas. (…) O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados.
É importante, ao falarmos de COLORISMO, não cometermos o mesmo erro. AFINAL, a QUEM isso pode interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se uma mulher negra é uma conquista”
(Todos os grifos em caixa alta são todos meus)
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Quero ressaltar a informação dada no começo da leitura. Esse texto acima é de Bianca Santana, lançado na edição da revista Cult de Maio/2018, bem antes dos acontecimentos que se tornaram “tretas” de redes sociais envolvendo Fabianna Cozza, o espetáculo Dona Ivone Lara, jogos jurídicos na PUC. “Tretas” que para os envolvidos são bem mais do tretas, são vidas, instantes de vidas com sofrimento, resignação, dúvidas, conflitos, inferno social e emocional.
Foi lançado, portanto, bem antes da polêmica Fabiana Cozza, atriz negra de pele clara, ou parda como registrada em sua certidão de nascimento. Ela se retirou da produção do musical Dona Ivone Lara, ao ter sua escalação par ao papel questionada por ser parda e não negra retinta como Dona Ivone Lara. Li e reli muitas opiniões e comentários. E todas as vezes o texto de Bianca Santana me vinha a cabeça.
Foi lançado antes do episódio de domingo passado (03/06) em que jovens estudantes de direitos da PUC teriam sido racistas com estudantes de direitos da UERJ. Foi lançado bem antes do lançamento do Atlas da Violência 2018, que mostra como enquanto há queda de letalidade de pessoas brancas (ok, não é enorme, mas há uma queda de mais de 6%), pessoas não brancas: negros e pardos, são cada vez mais assassinados no Brasil.
O texto de Bianca Santana não sai da minha cabeça, porque em parte, ele explica esse quadro contemporâneo brasileiro. Especialmente, o episódio de Fabiaza Cozza. A ideia do desvelamento do suposto mito da democracia racial, bem como da apaziguação de conflitos foram as únicas certezas que ficaram em mim sobre o episódio. Assim como que a ideia da procura de uma identidade em identidade, conceito adotado por Valter Mignolo, não apenas é necessária como faz parte da ideia de classe e da luta de classe.
Essas vozes, portanto, não podem ser reduzidas a mimis de facebookianos ou podem ser acusada de uma fragmentar a luta de esquerda, a classe, perante a lutas mais importantes. Não podem ainda servir para afirmar que o lugar de fala divide a esquerda. Aliás, erro comum em diversos textos que li e opiniões é confundir lugar de fala com representatividade. Aviso: são coisas diferentes.
“Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele ocupa (e não do lugar que ocupa o outro) Acreditamos que não pode haver essa desresponsabilização do sujeito do Poder. A travesti negra fala a partir da sua localização social assim como o homem branco cis. Se existem poucas travestis negras em espaços de privilégio, é legitimo que exista uma luta para que elas de fato possam ter escolhas numa sociedade que as confina num determinado lugar, logo é justa a luta por representação, apesar dos seus limites. Porem, falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer pensem”, explica Djamila Ribeiro.
Argumentar que lugar de fala e representatividade são coisas iguais é um erro. Para além dele, é negar que “o modo de conceber ou não autoridade (e legitimação de discursos) com base nas posições e marcas políticas que um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas desiguais de distribuição das violências e dos acessos” (Jota Mombamça). É criticar sem reconhecer “o fato de que há uma política (e uma polícia) da autorização discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero dizer: não são os ativismos de lugar de fala que instituem o regime de autorização” (Jota Mombamça). Ele está posto. Foram instituídos colonialmente. Negar isso é desonestidade intelectual.
Ressalto que, os argumentos de divisão da esquerda, fragmentação e bem como a redução destas múltiplas vozes que interrompem regimes de autoridade postos, em minha franca opinião dividem muito mais a classe do que agregam a luta de classe. Porque partem de um dispositivo colonial de silenciamento de vozes e memórias, bem como de acesso a direitos. As políticas públicas que possam efetivamente traduzir e conectar a desigual distribuição de pedaços de Brasil, que foram fragmentados pela política escravagista, pelo mito da democracia racial, pelo medo branco dos não-brancos, medo tão grande que até negou a pardos e negros de forma política na gestão do Estado o direito a cor. Por que sem cor num país desigual, não é necessário pensarem políticas públicas e/ou solução para a má e intencional distribuição de tudo: renda, direitos políticos, oportunidades e até a vida. Ainda que raça, como explica Mbembe, seja uma fabulação, é uma fabulação que existe na prática e opera a necropolítica. Abram o Atlas da Violência 2018 e terão o exemplo claro do que é necropolítica para além de explicações teóricas.
Então, os argumentos operados sobre a importância da representatividade não são tolos. Não são mimis de “gente de rede social”. Inclusive, é bom para se pensar resgatar que “com todos os limites, o espaço virtual tem sido uma espaço de disputas de narrativas, pessoas de grupos que historicamente discriminados encontram aí um lugar de existir” (Djamila Ribeiro). E agora, essas vozes estão querendo empurrar (sim, eles tem pressa e nesta pressão cometem também erros comuns aos que tem pressa) essa disputa par ao campo a ação prática do cotidiano. Incluindo, a representatividade sobre a cor da atriz que vai interpretar um ícone das suas memórias.Porém, reduzir sua disputa a mimis , acusá-los de fragmentar a classe, não sei se dá conta dos conflitos sociais e raciais que emergem e explodem na nossa cara. Numa sociedade como a brasileira, de hierarquização escravocrata de absolutamente tudo, até a vida, é evidente que pessoas negras (retintas) vão “experenciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, do lugar que restringe oportunidades por conta de um sistema de opressão” de forma diferente que as pessoas negras de pele clara: os pardos.
Olhar apenas para essa micropolítica – que não é absolutamente desimportante – bem como somente olhar a criatura colonial “o pardo” sob a perspectiva da experimentação negociada de racismo – que é imprescindível ser analisada – que pode sim deturpar a importância da representatividade por processos de identidade política. Jogar assim para os bastidores o que essa jornada emerge de tão importante: os lugares de privilégios brancos e o apagamento da existência das vozes e lugares de fala de negros e de outras minorias.
“Não, não estou falando de “política de identidade”, mas de “identidade em política”. Não há, pois, necessidade de argumentar que a política de identidade se baseia na suposição de que as identidades são aspectos essenciais dos indivíduos, que podem levar à intolerância, e de que nas políticas identitárias posições fundamentalistas são sempre um perigo. Uma vez que concordo parcialmente com tal visão de política de identidade – da qual nada é isento, já que há políticas identitárias baseadas nas condições de ser negro ou branco, mulher ou homem, em homossexualidade e também em heterossexualidade –, é que construo meu argumento na relevância extrema da identidade em política. E a identidade em política é relevante não somente porque a política de identidade permeia, como acabei de sugerir, todo o espectro das identidades sociais, mas porque o controle da política de identidade reside, principalmente, na construção de uma identidade que não se parece como tal, mas como a aparência “natural” do mundo. (…) a identidade em política é crucial para a opção descolonial, uma vez que, sem a construção de teorias políticas e a organização de ações políticas fundamentadas em identidades que foram alocada, (…) pode não ser possível desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no mundo moderno em uma economia capitalista. As identidades construídas pelos discursos europeus modernos eram raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais” (MIGNOLO, 2008).
Mas daí, me veio a dúvida – que confesso seguir com ela. Estamos diante de uma política de identidade aqui (importantes como já mostrados historicamente na década de 60 e 70, nos EUA, mas que pode sim fechar-se em guetos), ou estamos diante de uma IDENTIDADE EM POLÍTICA no Brasil?
Fico pensando que, somente após muitas reflexões e avaliações, que poderemos ter certezas do que são e como foram esses processos.
Por hora, estamos no contemporâneo. É absolutamente difícil avaliar. Sinto que seguimos na Jornada, cavalgando, viajando, vivendo, sem realmente refletimos sobre ela de forma sincera, com honestidade intelectual.
O que tenho certeza é que: o mito da democracia racial no Brasil está deposto. Claro. E branco. Como aqueles que o criaram. Os conflitos estão aí desde do período colonial e não foram apaziguados. Apenas embraquecidos e silenciados. A qualquer custo. E de todas as maneiras. Mas agora, eles emergem como nunca antes. E eu? Bom eu sou parda de certidão, mestiça de colonização, e negra clara na minha definição política que está inscrita na identidade em política. Porque minha opção é pela desobediência epistêmica e desobediência política.
É como explicou Valter Mignolo: “A identidade em política, em suma, é a única maneira de pensar descolonialmente (o que significa pensar politicamente em termos e projetos de descolonização). Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organização do conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente, ou seja, formas que não são descoloniais, significam permanecer na razão imperial; ou seja, dentro da política imperial de identidades”.
Outra certeza que tenho é: nos falta ponto de escuta entre nós. O inimigo é outro.
Mas não dá pra dar as mãos a quem aponta dedos. Não dá pra segurar em dedos que se fecham. E definitivamente não dá para ter ao lado dos nossos ombros outros ombros que dão as costas e saem. Andando para o lado oposto. E só será possível essa escuta desse lugar de desobediência epistêmica e política.
Porque só foi depois de 903 páginas abertas. Foi só quando desci do navio com Kehinde, que compreendi meu “Defeito de Cor” pardo. Pra além, de ser mulher periférica. não dá pra negar essa reflexão. Mas minha decisão não é pela fissura, mas não é também pela conexão surda.
Não é fácil ser mulher e escrever nesse mundo. Não fomos preparadas para escrever. Não fomos preparadas para dizer. O mundo não foi preparado pra nos escutar. Ser mulher neste “defeito de cor”, retinta ou parda então é um complexo muito mais complexo.
A dor de Fabiana Cozza não é de gratuita. A dor de mulheres retintas não é gratuita. A dor de classe não é mera treta de rede social.
Por fim, quero dizer que quanto mais leio Angela Davis, tenho mais certeza: cometeu-se ao longo da história da luta dos trabalhadores o erro de pensar classe sem pensar em racismo. Podemos está tomando o caminho inverso, mas também errático de pensar racismo sem pensar em classe.
Obrigado por vim até aqui nesse meu devaneio.
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* Além do texto de Bianca Santana, da Revista Cult, foi usado como base teórica os livros:
Angela Davis (Mulheres, Raça e Classe; e Mulheres, Cultura e Política),
Djamila Ribeiro O que é lugar de Fala),
Achille Mbembe (Necropolítica e Critica da Razão Negra),
Valter Mignolo (Desobestidênmcia Epistêmica), disponível em <http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/34/traducao.pdf>
Ana Maria Gonçalves (O Defeito de Cor) disponível em <http://lelivros.love/book/download-um-defeito-de-cor-ana-maria-goncalves-em-epub-mobi-e-pdf/>.